Há algumas semanas, foi lançado o filme “De repente uma família”, que conta a história de um casal que adota três irmãos. Embora o filme trate o tema em forma de comédia, o assunto merece atenção. Afinal, vivemos em uma país com quase 10mil crianças aptas a serem adotadas.
Conversamos com Hugo Damasceno Teles, advogado e assessor jurídico do Aconchego Grupo de Apoio à Convivência Familiar e Comunitária (em Brasília, www.aconchegodf.org.br) e da ANGAAD Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (em âmbito nacional, www.angaad.org.br), para falar um pouco mais sobre o cenário da adoção no nosso país.
Aventuras Maternas – Quantas crianças esperam, hoje, adoção no Brasil? Entre essas, qual seria a porcentagem de irmãos?
Hugo Damasceno Teles – Segundo o CNA (Cadastro Nacional de Adoção, http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf), há, hoje, 9.274 crianças e adolescentes aptos a serem adotados no Brasil. Dentre eles, 4.049 (43,66%) não possuem irmãos; 5.225 (56,34%), sim.
Aventuras Maternas – É realmente muito burocrático adotar no nosso país? Ou essa dificuldade acontece em todo o mundo? Por que?
Hugo Damasceno Teles – Há uma burocracia necessária e inafastável. Estamos a falar da vida de pessoas que têm pouca capacidade de autoproteção. O Estado e nós, como sociedade, temos obrigação de velar por elas. Em razão disso, é imprescindível que o contexto de vida dos pretendentes a mães e pais por adoção seja profundamente analisado. Deve-se verificar, em suma, se os pretendentes são, de fato, aptos a adotarem e quais os seus propósitos. Assim, como há casais que engravidam para salvar casamento, há situações em que a adoção é apenas um caminho de mudar a relação do casal. O filho ou filha, é portanto, menos importante. Há outras pessoas que não estão preparadas. Há até mal intencionadas. No Brasil, contudo, há um adicional negativo: as etapas da burocracia se arrastam por muito tempo. É que todo o sistema de justiça de infância e juventude está desaparelhado, sem estrutura suficiente para dar conta da demanda do trabalho. Faltam profissionais técnicos (em especial nas áreas de psicologia, serviço social e pedagogia) aptos a analisarem, com a profundidade necessária, todas as personagens, em todas as etapas, dos procedimentos em torno da adoção. A fase de habilitação dos pretendentes tem demorado imensamente. A definição da situação jurídico-social das crianças e adolescentes abrigados demanda vários meses. O mesmo ocorre com a verificação da situação dos menores que já foram integrados em uma família. E falta vontade política dos Poderes Judiciários estaduais para a mudança desse cenário.
Aventuras Maternas – O que é levado em consideração sobre os adotantes na hora de adotar? Quais são as exigências?
Hugo Damasceno Teles – Não há exigência sobre estado civil ou orientação sexual; o adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o menor; não podem adotar os ascendentes (como avô ou avó) e os irmãos da criança e do adolescente; para a adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família; os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, desde que o estágio de convivência com o menor tenha se iniciado na constância do período de convivência, seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade e haja concordância sobre guarda e visitas. Agora, o principal, que é verdadeiramente levado em conta pela equipe técnica que avalia cada candidato, é o real desejo de se tornar pai e mãe e a plena capacidade (não financeira, mas emocional) de acolhimento de uma criança ou adolescente como filha ou filho.
Aventuras Maternas – Um mulher ou homem solteiro tem reais chances de adotar uma criança por aqui? Fale sobre isso.
Hugo Damasceno Teles – Sim! Não há nenhuma diferenciação, nem jurídica nem prática, sobre isso. Pessoas solteiras integram normalmente o cadastro nacional de pretendentes. E são chamados a adotar tão somente em razão das suas posições nesse cadastro. O mesmo se dá com relação aos casais homoafetivos. São habilitados e figuram no cadastro de pretendentes em igualdade de condições com os casais heteroafetivos. Há uma propensão de que os casais homoafetivos esperam menos tempo para adotar porque estão mais abertos para adoções mais desafiantes, como a de crianças mais velhas e adolescentes e de grupos de irmãos. Aqui no DF, neste ano, a adoção tardia (crianças mais velhas e adolescentes) foi a principal escolha de casais gays.
Aventuras Maternas – Quando se trata de irmãos, a adoção sempre tem q ser de todos? Fale sobre isso.
Hugo Damasceno Teles – A lei diz que os grupos de irmãos serão colocados sob adoção na mesma família substituta. Essa é a regra que o juiz de família deve buscar atender, em primeiro lugar. Agora, excepcionalmente, e desde que comprovada situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa (como, por exemplo, a situação em que os irmãos só serão adotados por famílias diversas), os irmãos podem ser separados. E quando isso ocorrer, as famílias devem se comprometer a evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais.
Aventuras Maternas – Você e sua esposa adotaram duas crianças, certo? Sempre foi a ideia adotar duas crianças? Como foi essa decisão? Conte um pouco da história de vocês.
Hugo Damasceno Teles – Somos mãe e pai, muito felizes, do João e da Camila, hoje com 8 e 7 anos, respectivamente. A adoção do João se iniciou em 2009 e a da Camila em 2011. Sempre pretendemos ter mais de um filho, pois acreditamos que a existência de irmãos enriquece a nossa experiência. Apesar de iniciadas em anos diferentes, a sentença de adoção de ambos foi proferida no mesmo dia 13 de maio de 2013. Todos os anos, celebramos essa data especial. O que tem de diferente na nossa caminhada como pais por adoção é o perfil das crianças. Quando nos habilitamos a adotar, em 2007, nós desejávamos crianças brancas e recém nascidas. Em razão dos debates em que nos envolvemos no Aconchego, mudamos o perfil desejado. E decidimos adotar crianças de qualquer raça (e falo de raça do ponto de vista sociológico, branco, preto, indígena, oriental, variações e etc.) e aceitamos crianças mais velhas. Os meninos, que são negros, chegaram pequenos. O João, recém nascido. A Camila, com um ano de idade. O João chegou no Natal e a Camila no dia do meu aniversário. Essas datas são duplamente festejadas. Temos muito orgulho da nossa família multicolorida. Percebemos e não nos importamos com os olhares de estranhamento. Olhares esses que tanto temíamos quando, no início, optamos por adotar crianças parecida conosco para escondermos que somos uma família formada por laços adotivos. Não temos medo de falar disso com quem quer que seja. Já formos abordados no aeroporto, no metro, no táxi, na escola, na fila da padaria, no shopping e em qualquer lugar que você possa imaginar. E encaramos tudo com naturalidade porque conversamos abertamente sobre isso em casa, desde que os meninos chegaram em nossas vidas. Essa naturalidade não foi conquistada de modo fácil. Conseguimos isso graças ao trabalho do nosso Grupo de Adoção, o Aconchego. Aconselho que todos façam o mesmo.
Aventuras Maternas – Quantos anos, em média, as crianças aguardam por adoção?
Hugo Damasceno Teles – Isso é muito relativo. Considerando os perfis mais comumente desejados, os bebês serão entregues em guarda pouquíssimos dias depois de acolhidos ou logo depois de finalizado o processo de destituição do poder familiar. A regra é que esperarão muito pouco tempo. O outro extremo, formado por crianças mais velhas, adolescentes, grupos de irmãos e menores com problemas de saúde graves, sofre, em frequência, com o pior tipo de espera. A espera do que nunca chega. A esperança pelo futuro distante, pois o futuro próximo é marcado pela desesperança. E a certeza, crescente e amargurante, de que não viverão em família. Felizmente, graças ao trabalho dos grupos de apoio à adoção, o número de adoções com os perfis menos desejados tem aumentado constantemente a cada ano. Mas ainda há muito a ser feito para que a espera seja cada vez menor.
Aventuras Maternas – Qual é o perfil normalmente mais procurado? Bebês? Crianças até x anos?
Hugo Damasceno Teles – Quando falamos em perfil, não falamos somente em idade. Há outras características que são pensadas pelos pretendentes. As estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf) indicam as seguintes preferências: dos 44.921 candidatos cadastrados, 49.48% (22.228) aceitam filhos de qualquer raça; a maioria, 64.44%, é indiferente com relação ao sexo; 62.93%, não aceitam adotar irmãos; o maior percentual, 18.61% (8.362), é formado por pretendentes de crianças com até 3 anos.
Aventuras Maternas – Se pudesse dar um conselho para pessoas ou casais que estão na fila de adoção, qual seria?
Hugo Damasceno Teles – Transformem o tempo de espera em tempo de preparação. O melhor caminho é comparecer às reuniões organizadas pelos grupos de apoio à adoção. A lista dos grupos de todo o país está no site da ANGAAD, www.angaad.org.br.
Aventuras Maternas – Para o processo de adoção correr mais rapidamente, existe maior facilidade quando a adoção é de irmãos?
Hugo Damasceno Teles – Não há facilidade. Mas há uma espera menor quando há o desejo de adoção de qualquer um dos perfis menos desejados: crianças mais velhas, adolescentes, grupos de irmãos e menores com problemas de saúde. Nesses casos, praticamente não há espera para o início do estágio de convivência, a primeira etapa para a adoção.
Aventuras Maternas – E se a adoção é de irmãos, mas um deles não quer ficar? O que acontece?
Hugo Damasceno Teles – Toda vez que o juiz verifica a dificuldade de adoção de todo o grupo de irmãos, ele submete a situação à equipe técnica (psicólogos, assistentes sociais e pedagogos). A missão desses profissionais é encontrar uma saída viável para que todos tenham uma família. De preferência, devem conviver no mesmo núcleo familiar. Verificando uma impossibilidade insuperável, deve-se seguir pelo caminho prejudicial para a maioria: permitir a adoção do maior número de irmãos e sempre impor o compromisso do convívio entre eles para que os laços fraternos não se percam. As separações são sempre precedidas de decisões muito difíceis para todos (pais adotivos, irmãos, juízes, promotores, advogados e equipe técnica). Por isso, são excepcionalíssimas.
Aventuras Maternas – Mais alguma informação que queira acrescentar?
Hugo Damasceno Teles – Sempre destaco outro dado estatístico para verificarmos o tamanho do problema das crianças acolhidas no Brasil. Como disse na resposta à pergunta n. 2, há, hoje, 9.274 menores aptos a serem adotados. Há outro cadastro de crianças e adolescentes acolhidos CNCA, também disponibilizado pelo CNJ. Segundo ele, há, hoje, no Brasil, 47.287. Ou seja, dentre as crianças e adolescentes acolhidos, a enorme maioria, 38.013 vivem em abrigos e não estão aptas a serem adotadas. Vivem num limbo jurídico, social e psicológico. Não estão nem nas suas famílias e nem estão à disposição para comporem uma família. A fim de solucionar esse problemas, no ano passado, o Congresso Nacional editou a Lei n. 13.509/2017, estabelecendo prazos para a definição da situação desses menores. No entanto, apesar dos esforços dos juízes de infância (profissionais muito comprometidos) para o cumprimento desses prazos, há muito a ser feito, pois, como disse, o sistema de justiça de infância e juventude está muito defasado. Em 2012, o CNJ determinou, por meio do Provimento n. 36 (http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/provimento_36.pdf), a adoção de inúmeras medidas. Destaco a primeira: a criação de varas especializadas em infância e juventude em todos os municípios brasileiros com mais de 90 mil habitantes. Mesmo passados 6 anos, pouco foi feito nesse sentido. Quem sofre são as crianças, os adolescentes, os pretendentes a se tornarem pais por adoção, os juízes e juízas comprometidos e todos nós que empunhamos essa bandeira de luta por direitos.